Trecho do 4º capítulo de “O filho eterno”:
A manhã mais brutal da
vida dele começou com o sono que se interrompe — chegavam os
parentes. Ele está feliz, é visível, uma alegria meio dopada pela
madrugada insone, mais as doses de uísque, a intensidade do
acontecimento, a sucessão de pequenas estranhezas naquele espaço
oficial que não é o seu, mais uma vez ele não está em casa, e há
agora um alheamento em tudo, como se fosse ele mesmo, e não a
mulher, que tivesse o filho de suas entranhas — a sensação boa,
mas irremediável ao mesmo tempo, vai se transformando numa aflição
invisível que parece respirar com ele. Talvez ele, como algumas
mulheres no choque do parto, não queira o filho que tem, mas a idéia
é apenas uma sombra. Afinal, ele é só um homem desempregado e
agora tem um filho. Ponto final. Não é mais apenas uma idéia, e
nem mais o mero desejo de agradar que o seu poema representa, o
ridículo filho da primavera — é uma ausência de tudo. Mas os
parentes estão alegres, todos falam ao mesmo tempo. A tensão de
quem acorda sonado se esvazia, minuto a minuto. Como ele é? Não
sei, parece um joelho — ele repete o que todos dizem sobre
recém-nascidos para fazer graça, e funciona. O bebê é parrudo,
grande, forte, ele inventa: é o que querem ouvir. Sim, está tudo
bem. É preciso que todos vejam, mas parece que há horários. Daqui
a pouco ele vem — aquele pacotinho suspirante. A mulher está
plácida, naquela cama de hospital — sim, sim, tudo vai bem. Há
também um rol de recomendações que se atropelam — todos têm
alguma coisa fundamental a dizer sobre um filho que nasce, ainda mais
para pais idiotas como ele. Eu fiz um curso de pai, ele alardeia,
palhaço, fazendo piada. Mas era verdade: passou uma tarde numa
grande roda de mulheres buchudas, a dele incluída, é claro, com
mais dois ou três futuros pais devotos, atentíssimos, ouvindo uma
preleção básica de um médico paternal, e de tudo guardou um único
conselho — é bom manter uma boa relação com as sogras, porque os
pais precisam eventualmente descansar da criança, sair para jantar
uma noite, tentar sorver um pouco o velho ar de antigamente que não
voltará jamais.
Foto: Ana Mendes/Festipoa
Foto: Ana Mendes/Festipoa
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